RESIDÊNCIA BELOJARDIM PERNAMBUCO/BRASILRESIDÊNCIA BELOJARDIM 2021

Residência
Belojardim



Em 1980, o artista e designer pernambucano Aloísio Magalhães chega atrasado para uma reunião em São Paulo sobre tecnologias. Vindo direto do Nordeste, depara-se com uma discussão de altíssimo nível e complexidade, que versava sobre a ampliação do metrô paulistano, os milhões necessários em dinheiro e em recursos para a obra ocorrer etc. Aloísio atordoa-se com a escala de valores jamais sonhada e interrompe a reunião com a pergunta: “E Triunfo?” Obviamente, todos os presentes se entreolham e se questionam sobre o que se estava arguindo. Após explicar do que se tratava a cidade de Triunfo, em Pernambuco, o gestor cultural conclui: “Era realmente uma tentativa de dizer que existe Triunfo. E quantos Triunfos existem por aí? E o que é que nós estamos fazendo senão justamente o contrário, destruindo, criando situações que nada têm a ver com aquela harmonia?” Após o acontecido, Aloísio alude mais uma vez à riqueza e à diversidade de temporalidades e de matizes da realidade brasileira a que deveríamos estar atentos.
    Quase quarenta anos depois, o contexto sociopolítico, econômico e cultural do país é muito distinto, não apenas por conta do impacto da tecnologia digital, mas pela estabilização da economia e pelo investimento em políticas sociais de redistribuição de renda. Isso é algo que se pode constatar facilmente ao andar Nordeste adentro, e que parece ter deixado um legado permanente, mesmo levando em conta o período atual de desinvestimento. A região – que no último século assumiu uma posição de subalternidade e passou a representar o anacrônico, a miséria, o atraso – teve grandes picos de crescimento até recentemente e remodelou sua economia, inclusive entrando no mercado globalizado em alguns setores, entre eles, o da arte contemporânea. Apesar da concentração de renda e de oportunidades ainda ocorrer no eixo Rio-São Paulo, o mapa do circuito artístico descentralizou-se, abarcando cidades e estados até então invisíveis. A expansão desta cartografia permitiu que artistas, críticos, curadores, arte-educadores e designers de montagem pudessem desenvolver-se profissionalmente em seu estado natal sem precisar migrar para centros hegemônicos, passando a competir num mercado de arte em processo de internacionalização.
    E Belo Jardim? De fato, este período que durou cerca de quinze anos não chegou a atingir cidades de porte médio e pequeno, mas apenas capitais de alguns estados do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul. A interiorização de políticas de formação em artes visuais tem ficado a cargo de iniciativas isoladas promovidas por algumas instituições públicas e privadas, a exemplo do SESC e do Centro Cultural Banco do Nordeste. Em Pernambuco, uma geração mais jovem de empresários que colecionam arte contemporânea tem redefinido o legado cultural de seus antepassados em seus municípios de origem, como a Usina Santa Terezinha, em Água Preta, divisa com Alagoas, e o Instituto Conceição Moura, em Belo Jardim. Este último município, situado no Agreste, a 185 quilômetros do Recife, possui cerca de 75 mil habitantes e uma economia que orbita ao redor de três grandes empresas: Baterias Moura, Natto Frangos e Palmeiron, sendo que a Moura, companhia criada e ainda sediada em Belo Jardim, é líder no mercado latino-americano de baterias automotivas e exportadora para diversos países. Trata-se, portanto, de uma cidade que abarca escalas e temporalidades muito dessemelhantes e, neste sentido, distante da Triunfo de Aloísio Magalhães, que se contrapunha a uma grande economia como a paulistana.
    A forma que o Instituto Conceição Moura – instituição que leva o nome da cofundadora da fábrica de baterias Moura e grande incentivadora da cultura local –encontrou para retribuir e minimizar o impacto ambiental e social que a indústria causa na cidade foi investir em ações artísticas nas áreas de música, cinema e artes visuais. As duas primeiras linguagens foram contempladas com festivais e oficinas de formação. Já as artes ganharam residências para artistas. Fomos chamadas para pensar num formato compatível com Belo Jardim e vimos este convite como uma boa oportunidade de implementar algo que convergisse com nossas crenças e observações acerca do caráter por vezes predatório do sistema da arte. Sabemos que residências artísticas compõem hoje um dos pilares deste tal mundo da arte globalizado, assim como as bienais e as feiras de arte. Grosso modo, as residências são uma opção mais econômica que os grandes eventos, pois na contabilidade não entram despesas como transporte e seguro de obras, marcenaria, expografia, catálogos e convites. Além disso, viabilizam de maneira mais fluida a circulação de pessoas e de ideias por lugares que não dispõem de grande infraestrutura ou visibilidade. Entretanto, em muitas das circunstâncias, o que ocorre é uma nova versão de turismo cultural em lugares “exóticos” aos olhos ocidentais que podem exercer sua mirada condescendente e privilegiada sobre um entorno diverso do seu. Ao partirem, os artistas levam as obras realizadas nas residências, deixam alguns amigos e pouco impacto no local. Como realizar uma residência artística num contexto como o de Belo Jardim sem incorrer nesses cacoetes e performatividades do circo do mundo da arte? Como chegar a um local respeitosamente e deixar um lastro construtivo?
    Não tínhamos um roteiro traçado quando começamos a pensar no formato, apenas algumas questões que gostaríamos de discutir com os moradores da cidade, como, por exemplo, o conceito de Nordeste cristalizado no imaginário brasileiro em contraponto à situação atual de lugares como Belo Jardim. Havia anos que nós duas conversávamos a respeito do retorno da discussão sobre arte popular no âmbito da arte contemporânea e o consequente ressurgimento do nome e das práticas de Lina Bo Bardi, que mudou seu pensamento ao conhecer esta região. Queríamos chegar devagar para nos entrosar organicamente e compreender o lugar e suas dinâmicas e pessoas, mas como isso seria possível se somos forasteiras e não conhecíamos ninguém na cidade?    
    Entre muitas coisas que aprendemos o percurso da Residência Belojardim desde 2017, está a certeza de que, em um projeto de residência artística com bases sustentáveis, é de extrema importância o envolvimento pleno com o lugar, que passa pela escuta atenta daqueles que lá habitam, o respeito pela forma de fazer local e a ambientação ao meio. Enfrentamos, sem dúvida, uma série de dificuldades desde o início do projeto, o que é natural numa iniciativa deste porte e grau de experimentação executada num local que enfrenta grandes desafios como a falta d’água generalizada. Contudo, acreditamos que a experiência erigiu bases sólidas para uma proposta de longo prazo e de fato transformadora para todos os envolvidos.

Cristiana Tejo e Kiki Mazzucchelli