RESIDÊNCIA BELOJARDIM PERNAMBUCO/BRASILRESIDÊNCIA BELOJARDIM 2021

CAMILA SPOSATI


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Corpos de Phonosophia

2019—2021

Texto de Kiki Mazzucchelli

Desde 2015, Camila Sposati desenvolve uma pesquisa artística que incorpora instrumentos-objetos confeccionados em argila branca, preta, ou vermelha cujas formas remetem, por um lado, a instrumentos musicais milenares (cornetas, instrumentos de percussão, trompetes) e, por outro, aos órgãos internos do corpo humano ligados à audição. Nos últimos anos, Sposati apresentou diversas iterações dessa obra no Brasil e no exterior sob o título Phonosophia, muitas vezes incluindo experimentos de ativação sonora dos instrumentos por artistas e músicos convidados.

O projeto Corpos de Phonosophia, comissionado para a Residência Belojardim, representa um desdobramento inédito de Phonosophia, desenvolvido ao longo de três anos especialmente para o contexto da cidade de Belo Jardim, no agreste pernambucano. Com base no Teatro Legislativo de Augusto Boal (1996), Corpos de Phonosophia busca conectar o corpo pessoal ao social. O foco de interesse é explorar a fundo a relação das peças criadas com os corpos-sujeitos que as criam, a fim de investigar seu potencial como mediadoras entre as diferentes subjetividades e o mundo. Sposati explica que “para isso, devemos inicialmente ampliar o entendimento do corpo, que não é apenas físico, mas também dotado de voz, performance e legislação.”

Iniciado em 2019, o projeto sofreu inúmeras adaptações em virtude das restrições impostas pela pandemia global, chegando, finalmente a um formato que a artista define como “semidigital”. Em Corpos de Phonosophia, Sposati trabalhou com um grupo de catorze residentes da cidade, com formações e atuações profissionais distintas que, entre setembro e dezembro de 2021, frequentaram dois encontros semanais com a artista e com a preparadora corporal Amália Lima que culminaram na produção de um instrumento de argila por cada participante.

Os participantes foram divididos em grupos de até cinco pessoas que se reuniam na antiga Fábrica Mariola, no centro da cidade. Nesse espaço amplo foi instalado um telão onde era projetada a ligação remota com Camila (desde Viena) e Amália (desde o Rio de Janeiro), que orientavam os participantes de acordo com um programa estruturado de atividades que envolvia exercícios corporais e a experimentação com a argila. A cada participante foi designada uma área de trabalho no grande salão de entrada da fábrica que resultava em um espaço pessoal de aproximadamente 50m2, onde cada um realizava os exercícios propostos. É importante ressaltar que esse caráter processual e imaterial de Corpos de Phonosophia – os encontros – está no cerne do projeto, pois foi justamente a partir da convivência e da troca intensa entre Camila, Amália e o grupo que, aos poucos, foram criados os laços de intimidade e confiança que lhes permitiram acessar e dar forma a elementos de seus corpos e subjetividades normalmente reprimidos na vida cotidiana. Os participantes eram acompanhados, ainda, pela equipe local da Residência Belojardim, incluindo David Biriguy (produtor), Heleno Florentino (vídeo) e Jadiel Silva (fotografia), os dois últimos responsáveis pelos impecáveis registros dessa importante fase do projeto.

 
Pela primeira vez na história de Phonosophia os instrumentos-objetos em argila foram produzidos não pela artista, mas por participantes do projeto. A proposta de Camila ao grupo foi que cada um elaborasse, ao final do processo, o protótipo de um instrumento musical de sopro. Uma vez que não era necessário considerar sua funcionalidade, os participantes puderam gozar de maior liberdade imaginativa, criando um instrumento musical absolutamente novo e em nada assemelhado aos conhecidos.

As únicas condições para a criação desses instrumentos eram as seguintes:

  • O instrumento concebido deveria ser um instrumento de ar (instrumento de sopro).
  • Como os demais instrumentos de Phonosophia, o instrumento concebido deveria ter como matéria-prima a argila, material que foi trabalhado ao longo dos encontros.
  • O instrumento concebido deveria ter dimensões compatíveis com o corpo do participante. Ele deveria poder ser segurado, apoiado, vestido ou carregado pelo participante no momento de sua ativação.

  • O instrumento concebido deveria adotar as dimensões ou ações corporais do participante como referência. Exemplos: dimensões e medidas (o comprimento de um braço, de uma perna, etc.), marcas da ação do participante sobre a argila (um soco, uma pisada, etc.).
  • O instrumento concebido deveria emitir um som elaborado pelo participante. Esse som poderia ser imaginário (íntimo) ou representativo-legislativo (por exemplo: relativo ao próprio corpo, som da natureza, som que já existe e é emitido por outros objetos ou instrumentos). Os participantes foram incentivados a pensar em um som que não fosse de instrumentos conhecidos.

Além disso, a cada participante foi solicitado considerar a situação social ou pessoal (do macro ao micro) sobre a qual gostaria de legislar ou intervir com a ativação do instrumento concebido. Os participantes comunicaram suas intenções aos demais, cabendo ao grupo contribuir para a concepção do instrumento, que deveria ser capaz de transformar o discurso pretendido em som. O aspecto sonoro desses instrumentos foi uma das peças fundamentais para Camila Sposati. Embora outras versões de Phonosophia tenham acolhido a improvisação sonora realizada por músicos experimentais, aqui era essencial que os instrumentos criados pelo grupo pudessem “dar voz” a aspectos da subjetividade de cada um, normalmente invisibilizados ou reprimidos. Para tanto, a artista enfatizou a importância de estarem sintonizados a intensidade e o ritmo da respiração do ativador com o que cada um gostaria de expressar (clamor político, lembrança social, desejos indizíveis, ou reciprocidade, por exemplo). Assim, o som dos instrumentos foi carregado da experiência viva e do pensamento daquele que o “toca”, provando que é possível expressar pontos de vista e emoções sem o uso das palavras. As gravações desses sons foram realizadas na fábrica e posteriormente mixadas pelo produtor musical Érico Theobaldo.

Mas igualmente importante para Camila é a recepção desse som. Para além de todas as referências à sonoridade dos instrumentos musicais, a escuta é também indispensável às dinâmicas genuinamente coletivas, que requerem atenção do e ao outro. A artista acredita que a escuta é uma ação de reciprocidade e levanta uma série de perguntas: “Quando o som atinge o ouvido, acontece uma revolução. Há ainda outras questões interessantes levantadas por uma dinâmica grupal: quando é que o som deixa de ser e se torna música? Como reverbera em nosso espaço interno? A escuta coletiva nos conecta também a nós mesmos? Ela nos leva à origem, ao nosso eu?”. Não se trata, necessariamente, de encontrar respostas para esses questionamentos. Pelo contrário, a natureza de Corpos de Phonosophia é absolutamente experimental, pois se trata de um projeto em que o conhecimento se constrói coletivamente, por meio de relações de confiança e intimidade e em período estendido – condições que raramente se apresentam no contexto das artes visuais.

O longo envolvimento de Camila Sposati na produção de instrumentos em argila torna-se, em Corpos de Phonosophia, um corpo coletivo e ao mesmo tempo íntimo, subjetivo. É nesse material que está a essência do trabalho: por sua ancestralidade, sua capacidade de se deixar moldar, por ser elementar a tantas culturas (e particularmente à cultura do agreste pernambucano), pela intimidade que requer daqueles que o manejam, pelo entendimento que exige de sua natureza física por parte de quem o manipula para evitar a quebra, e pelas infinitas formas que pode tomar. O instrumento-objeto se revela como sujeito quando há intencionalidade máxima e agência mínima. Camila ressalta a importância de se conhecer o material para que se possa produzir um objeto realmente potente, afirmando que “quanto mais perto estamos do material, mais perto estamos da verdadeira ação.”

Ao final do longo processo de trocas e exercícios propostos por Camila Sposati e Amália Lima, a artista passou a supervisionar a confecção dos instrumentos individuais. Trabalhando em parceria com o designer Rudá Cabral, a artista desenvolveu uma exposição digital, disponível no website da Residência Belojardim, onde podemos observar o conjunto dos instrumentos acompanhados de seus respectivos sons e imersos em uma espécie de balé ou concerto virtual recriado no ambiente da Fábrica Mariola. Flutuando no espaço da fábrica, os instrumentos ganham movimento e voz, tornando-se, eles próprios, os Corpos de Phonosophia.

Esse texto foi escrito a partir de anotações de Camila Sposati sobre a metodologia do projeto Corpos de Phonosophia, além de uma série de conversas com a artista ao longo dos últimos dois anos.